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Notícias

14 de maio de 2022

Tália 3

Tudo o que aumenta a liberdade

 Aumenta a responsabilidade.

 Vitor Hugo

Sim, engravidei com quinze anos. Eram meus planos? Não! Meus planos eram terminar o ensino médio, fazer o vestibular e passar na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Fui ensaiar o sexo sem proteção e aconteceu. Nesse momento ainda nem sei se minha vida é propriamente minha, de fato.

Depois que a terapeuta revelou para mim que eu estava com uma linda carinha de mãe, assumimos a gravidez, e contamos com o apoio de nossas mães. Continuei com as aulas de manhã e com os estudos em casa de tarde, restabeleci meu foco e estou decidida a conquistar uma vaga para cursar Belas Artes, este ano. Aqui acham pouco, mas penso que toda família deveria ter um artista em casa.

Choro ao lembrar o medo e angústia que sentia enquanto juntávamos  dinheiro para fazer aborto. Agora me sinto do avesso, vulnerável. Alguns colegas da escola me apoiam, uns me dão roupas para a bebê, outros afeto ou cuidado. Outros ainda se mostram assustados. Antes eu vivia na sombra, com medo, rígida. Agora vivo no presente, no real. Choro e rio de acordo com o que sinto, estou leve e fluindo.

Curiosa por conhecer nossa filha. Dizem que ao nascer o bebê tem a cara do pai, uma questão biológica de defesa natural. Da mãe todos sabem de quem é, mas do pai a própria natureza se encarrega de revelar.

Estou me desenvolvendo com a vida, um ciclo se passou, agora é outro. Sinto que pulei etapas, depois vou pensar a respeito. Aprendo a viver mais do meu jeito, a aceitar e comemorar minhas vitórias internas sem pensar nos julgamentos dos outros. O que eu decido e tiver estrutura para viver com serenidade, será o certo. Vou aprender a pensar e aceitar as consequências das minhas escolhas. Afinal, já me dei conta que a vida não é como a gente quer.  Penso e me escuto, assim não sou mais dependente do julgamento dos outros. Essa crise me fez refletir a respeito de quem eu sou e quais os obstáculos que quero enfrentar, e quais vou desviar.

Foi difícil? Não vou vestir de vermelho esse tema.

Conseguimos! Terminamos o ensino médio. Luísa nasceu com tudo no lugar.  Conquistamos nossa vaga na Universidade, eu em Belas Artes e Northon em Engenharia Civil.

A Faculdade liberou-me a estudar em casa os primeiros meses para continuar amamentando. Passado esse período, acordo cedo, arrumo a Luísa, a mochila e o material da faculdade, pego um ônibus e a deixo na casa da mãe do Northon, que se dispôs a ajudar. Depois tomo outro ônibus para ir à faculdade. No final da aula faço o mesmo trajeto de volta. Todos me ajudam no que podem: mamãe, vovó, minha irmã e a mãe do Northon. Quem menos ajuda é ele, se comporta como um universitário, que é. Diz que não sabe e não demonstra interesse em aprender. Um rapaz que passou em engenharia civil não aprende a trocar uma fralda? Ou dar uma mamadeira? Fico triste, é não querer aprender.

É fácil?  Não!  Sinceramente...

É bem difícil. Até agora ninguém da faculdade sabe que sou mãe, ainda tenho vergonha de contar. Por isso não tenho participado das atividades da turma, e nem feito amizades. Percebo que as mulheres hoje se unem para pensar as questões de gênero. As mais antigas abriram caminho para nós, sei que as pedras maiores elas já quebraram.

Conquistei uma vaga de monitora na própria faculdade. Fiquei animada por ganhar meu primeiro dinheiro e também pelo currículo que vou construindo. Diminuí o número de cadeiras para dar conta.

Consegui contar para uma colega da monitoria que tenho uma filha. Ela convidou-me para assistir de Vitor Hugo, 1980, Os Miseráveis no Teatro São Pedro, um dos mais lindos do Brasil. Minha mãe vai cuidar da Luísa.  O belíssimo espetáculo que conta a história de Jean Valjean mexeu com minhas entranhas, mas controlei as emoções para poder assistir. Na peça, Fantine deixa Paris com sua filha Cosette. No caminho em busca de trabalho e uma vida tranquila para criá-la, pede ajuda a uma família que lhe parece amorosa para cuidar da filha, e segue a busca. Encontra trabalho em outro vilarejo, em uma fábrica de Jean Valjean, que lhe parece boa pessoa. A supervisora da fábrica interpreta a discriminação feminina da época, descobre que Fantine manda dinheiro para os cuidados com a filha, e a denuncia.

Inicia sua humilhação e decadência, até a morte.

A peça mexeu com minhas entranhas. Refletindo minha realidade dei-me conta, o quanto de luta feminina já se deu para chegar onde nós mulheres estamos hoje.

Passei em um concurso fora da capital, comecei indo e voltando de ônibus. Mesmo com o início do meu trabalho, o Northon não evoluiu no apoio com nossa filha. Penso em mudar totalmente e construir uma vida da qual eu seja merecedora.

Vou deixar a casa materna para resignificar e superar os conflitos que me influenciam, da convivência com as pessoas, o que não é assim tão simples. Continuo umbilicalmente ligada à família, submissa aos mandos e desmandos, tanto que saio correndo sempre que sou chamada para solucionar os enroscos de algum deles.

Estou decidida a perseverar na minha escolha, fazer dessa a oportunidade para mudar tudo. Construir uma realidade em que eu tenha animo para me empenhar e sentir que minha vida vale a pena ser vivida.

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