Passo Fundo/RS: Neblina
Carazinho/RS: Tempo nublado
Passo Fundo/RS: Neblina
Carazinho/RS: Tempo nublado

Notícias

4 de junho de 2023

36,8 quilômetros

─ Doutor, o Valdomiro volta a jogar futebol, não é?

A mulher me olhava com um misto de horror e súplica. Eu havia recém entrado na sala de pronto-atendimento. O rapaz à minha frente devia ter uns 17 anos e estava em uma cadeira de rodas. Decidi começar pelo começo.

Há cinco dias, o jovem acordara com a sensação de que os pés tinham ido parar em um formigueiro. Não que as formigas lhe mordessem ou beliscassem, mas elas caminhavam em círculos, incessantemente, nas solas dos dois pés.

No segundo dia, elas tomaram as pernas, parando um pouco abaixo dos joelhos. Agora, algumas mordiam. No terceiro dia, ele não conseguia correr.

─ Doutor, ele alcançou a marca de 36,8 quilômetros por hora entre as duas grandes áreas do campo de futebol antes de ficar assim.

Usei uma pequena agulha para testar a sensibilidade da pele dos pés. Eu queria ter certeza de que ele era capaz de sentir a pontinha pinicando. Nada. Aumentei a força. Todos viram que um pouco mais e a agulha lhe furava a pele. Nada ainda. Peguei um chumaço de algodão para tocar a pele superficialmente. Nada, também. Ele era incapaz de sentir qualquer coisa, fria ou quente, leve ou dura, colocada em contato com a pele.

Ele tinha deixado de caminhar no dia anterior. Se tentasse levantar da cadeira, usando os braços, cairia ao chão. Nas últimas horas antes de vir ao pronto-atendimento, ele sentia que estava difícil para esvaziar a bexiga.

─ As pessoas costumam recuperar esse tipo de problema, não é doutor? Afinal, o Valdomiro é um atleta...

Nós costumamos chamar esse tipo de manifestação de paralisia ascendente com perda da sensibilidade e dos reflexos.

Tomei o pé do rapaz em uma das minhas mãos e com a outra usei meu martelinho de reflexos para desferir pequeno golpes sobre o tendão da panturrilha. Normalmente o pé reage empurrando a mão do examinador pra baixo. O pé do Valdomiro não se moveu. Eu não me dava por vencido antes de repetir essa manobra pelo menos umas 5 vezes.

─ A última vez que eu vi o Valdomiro puxar o braço para trás foi quando ele fez a vacina na outra semana, disse a mãe, como que se estivesse celebrando algo.

Dessa vez quem teve um reflexo foi eu. Levantei a cabeça, olhei para ela e perguntei:

─ Vacina?

Ela tergiversou tanto para responder, esmiuçando os mínimos detalhes com os olhos arregalados, que acabei voltando ao pé do Valdomiro. Ele também estava de olho arregalado. Nesse momento, eu consegui um pequeno reflexo e sorri. Valdomiro desarregalou e também sorriu. Pacientes são bons em detectar esperança.

Olhei para a mãe e disparei.

─ Em seis meses ele volta. Mas 36,8 quilômetros por hora, nem pensar. Agora vamos fazer a internação.

Utilizamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência, de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você concorda com estas condições.
Permitir