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Notícias

23 de julho de 2023

Vida no negócio

Por Martin Portner
@martinportner no Instagram

A padaria do Daniel fica ali no bairro. O prédio é velho, na esquina de uma rua estreita. Péssimo lugar para estacionar. Para entrar, uma pessoa de cada vez. O espaço é apertado; a disposição dos balcões e das gôndolas lembra um labirinto.

As atendentes têm a simpatia da guerrilheira sandinista. A meia-porta que dá para os fundos abre e fecha sem parar. A cada rangida, passam baforadas de pão-saído-do forno.

O Daniel fica no caixa. Sorriso largo, a barriga também, ele tem uma palavra para cada freguês. Antes de chegar nele, passa-se pela fila do pão, pela dos frios e, depois, pela do caixa. Pela falta de espaço, as filas serpenteiam lado a lado. Fregueses andam no passo miúdo de velório de gente conhecida.

Mas qual é a razão do sucesso da padaria do Daniel? Por que há filas? Ninguém soube me dizer. "O pão é superior" disse um, acrescentando "mas não sempre". Outro arrisca que não há concorrência por perto. "Todos vamos na padaria menos longe de casa, é a lógica."

Talvez fizéssemos isso uma ou duas vezes, mas ninguém volta para comprar pão de qualidade inconstante, onde o espaço é pequeno, a fila é longa e a paciência da balconista, curta.

A explicação está na pesquisa dos poetas suicidas.

Um estudo publicado em prestigiosa revista científica descreve um achado singular. Um software de computador analisou as palavras nos poemas de poetas que haviam se suicidado. Depois, o computador debulhou poemas de poetas não-suicidas.

As palavras não eram as mesmas. Poetas suicidas falam na primeira pessoa (eu, meu). Poetas regulares preferem nós, vocês, os outros. As palavras "perecer" e "sucumbir" aparecem nos poemas dos poetas doentes. A morte ronda suas vidas com a foice em uma mão e palavras mortas na outra.

Poetas regulares falam de pessoas, sentimentos, emoções, vitórias, conquistas, encantos, crianças, chá-da-tarde, fim-de-semana, coisas assim. Palavras com cor.

Pessoas regulares, poetas ou não, que vão à padaria, fazem mais do que comprar pão. Ir à padaria do Daniel significa tangenciar os outros, examinar a fila ao lado.

Enquanto uns se cumprimentam com algazarra, outros se constrangem ao serem vistos. Um cliente se surpreende como o vizinho envelheceu, o outro acha esquisito vir à padaria com o cachorrinho no colo, um terceiro não tira os olhos da vizinha que ele nunca vê e todos se deliciam com o cheiro de pão e vida. A padaria do Daniel e o texto dos poetas que não têm motivo para morrer estão na mesma 'váibe'. São pessoas que não querem saber só de si mesmas. Querem os outros, bisbilhotar a vida, respirar emoção.

Na padaria do Daniel, ele oferece algo sem preço: as cores da vida nas vidas dos outros.

É por isso que eu vou lá. Eu achava que o Daniel não sabia disso, mas sabe sim. Ele sabe que os fregueses fogem de padarias azulejadas, de balcões longos e sorrisos estreitos. Por isso, termino perguntando: você já parou para reparar quanta vida há no seu negócio?

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